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Cosmopolitismo do Barroco português - Notas ao Programa

A subida ao trono de D. João V, no final de 1706, aos 17 anos, marca o início simbólico da entrada de Portugal na Idade Moderna. Dois anos depois (1708), dá-se o seu casamento com uma arquiduquesa austríaca, Maria Ana1 (1683-1754), filha do imperador Leopoldo I (reinado: 1658-1705) e irmã dos imperadores José I (1705-11) e Carlos VI (1711-40)2. Juntos, João e Maria Ana virão a ser responsáveis por uma profunda mudança cultural no Reino, que se fez sentir de modo muito claro na música.

 

Ao projecto de D. João V de fazer de Lisboa uma nova Roma uniu-se a educação musical esmerada e gosto musical requintado da rainha, oriunda da corte de Viena, dominada pelo gosto italiano na ópera e na música sacra.

 

A contratação de Domenico Scarlatti, maestro da Capella Giulia da Basílica de São Pedro, que chega a Portugal em 1719 para assumir o cargo de mestre da Capela Real e professor dos infantes e aqui ficará por dez anos, compondo e dirigindo óperas, serenatas, música sacra e música para tecla; a contratação, em 1725, de Giovanni Georgi (c. 1690-1762), mestre de capela da Basílica de São João de Latrão (sede da diocese de Roma) para compositor da Corte e mestre de solfa do Seminário da Patriarcal; enfim, a contratação de numerosos músicos italianos e de outras nacionalidades para a Capela Real portuguesa sinalizam uma actualização qualitativa do aparato musical de Corte que coloca Lisboa ao nível de grandes centros musicais europeus da época.

 

Outro aspecto a ter em conta na ‘política romana’ de D. João V é o projecto de fazer de Lisboa sede de Patriarcado. Ao tempo, havia apenas os patriarcados de Jerusalém (que desde o século XIV tinha por sede Roma) e o de Veneza, criado em meados do séc. XV3. O projecto é coroado de sucesso em 1716, derivando daí as designações de Sé Patriarcal e de Cardeal-Patriarca, e passando a Capela Real a ser Capela Patriarcal.

 

Paralelamente, dera-se a criação do Real Seminário de Música (depois chamado da Patriarcal e anexo à Capela Real), em 1713, o que foi um passo decisivo para conseguir um estabelecimento musical de Corte de primeira qualidade, ao mesmo tempo que se viria a revelar o principal centro de formação de músicos e compositores portugueses até à criação do Conservatório, já com o Liberalismo.

 

Os primeiros frutos brilhantes desta escola foram os bolseiros enviados para Roma para aí completarem a sua formação: António Teixeira, Francisco António de Almeida e João Rodrigues Esteves. São eles os primeiros compositores portugueses formados no gosto e estilo italianos, marcando assim a primeira de sucessivas gerações de músicos de ‘escola’ italiana activos em Portugal, das quais Pedro António Avondano e João de Sousa Carvalho (este, ex-aluno e depois professor do Seminário da Patriarcal, também passou alguns anos em Itália (Roma e Nápoles)) são exemplos mais tardios no mesmo século.

 

Outra figura musical de 1.º relevo da época, Carlos de Seixas, assume no início da década de 1720 o posto de organista da Capela Real e da Sé Patriarcal e cravista da Corte.

 

Embora passando a Espanha no final de 1729, acompanhando a Infanta Maria Bárbara, casada com o herdeiro do trono espanhol, Domenico Scarlatti permanecerá toda a vida muito próximo da Infanta e manterá sempre contactos e relações próximas com a Corte portuguesa. Quando falece, em 1757, a fama das suas Sonatas (designadas de ‘Essercizi’) era já grande em toda a Europa, e designadamente na Inglaterra. Ora, havendo neste país também uma grande apetência pelo ‘concerto grosso’, o compositor Charles Avison (1709-70), natural de e activo em Newcastle, serviu-se de larga quantidade desses ‘Essercizi’ e transcreveu-os para orquestra de cordas e baixo contínuo (e transpondo a tonalidade original, sempre que necessário), assim produzindo os ‘12 Concerti grossi a sete partes, a partir de Scarlatti’, editados a expensas suas em 1744. O n.º 3, em ré menor, tem quatro andamentos, baseados, respectivamente, nas seguintes sonatas de Scarlatti: K89, K37, K38 e K1.

 

A dança ‘folia’ crê-se ter origem no Portugal renascentista. O baixo que lhe serve de suporte – um padrão harmónico constante, que se vai repetindo – serviu de inspiração e de suporte a inúmeros compositores desde o Barroco ao século XX. Um deles foi Vivaldi, que decidiu terminar o seu opus 1 (uma colecção de 12 Trio-sonatas), editado em 1705, com um conjunto de variações sobre esse padrão harmónico. Referência foi sem dúvida Arcangelo Corelli, que cinco anos antes também assim terminara o seu conjunto de 12 Sonatas para violino, op. 5. 

 

Com a subida ao trono de D José I, o italianismo musical da Corte portuguesa mantém-se inalterado, mas agora pendendo mais para a ópera, o que tem por efeito um redireccionamento do “foco” de Roma para Nápoles4. O Terramoto de 1755 marca o fim do teatro de ópera de Corte (inaugurado oito meses antes do funesto evento), mas de modo algum o fim da ópera italiana5 na Corte, que agora se distribuía, em espaço fechado ou ao ar livre, pela Ajuda, por Salvaterra de Magos e, mais para o final do século, por Queluz. A segunda metade do século é ainda marcada pela influência de dois prestigiados compositores italianos do pós-Barroco: Niccolò Jommelli (1714-74) e Davide Perez (1711-78), que gozaram da protecção e incentivo da corte lisboeta e que influenciariam por sua vez as criações dos músicos portugueses da época.

 

Nota sobre as obras vocais:

 

A ária ‘Dirás ao meu bem’ provém da ópera joco-séria em duas partes ‘Guerras do alecrim e manjerona’, colaboração entre António Teixeira e António José da Silva (dito ‘o Judeu’) estreada no Teatro do Bairro Alto, em 1737. Estas ‘óperas ao gosto português’, como se designavam, cantadas em vernáculo, tinham grande popularidade nos teatros públicos da Lisboa da época e funcionavam como crítica ao italianismo reinante e às convenções operáticas, assim como satirizavam vários aspectos das elites sociais coevas. 

 

A cantata ‘A quel leggiadro volto’ tem datação desconhecida e estrutura-se como uma típica cantata de câmara italiana, com Recitativo-Ária-Recitativo-Ária, as árias usando a forma ‘da capo’. O Eu poético é um amante ausente (não se sabe por que razão) que observa as penas que a amada sofre pela sua ausência. A 1.ª ária é um ‘Andante ma non presto’ em ré menor, tonalidade apta a expressar a exortação que ele aqui faz à amada. A 2.ª ária é um ‘Allegro’ ao qual Almeida confere variedade pela alternância que estabelece dos compassos 4/4 (dístico 1 de A) e 3/8 (dístico 2 de A).

 

A ária ‘Questi al cor’ é a 1.ª ária da 2.ª parte da oratória ‘Morte d’Abel’, sobre texto de Metastasio, estreada c. 1760 em Lisboa, e cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Estatal de Berlim. Ela tem lugar no momento crucial da obra, quando Abel se prepara para sair para os campos com o irmão (Caim) e, no entanto, sente uma qualquer inquietação prendê-lo à casa familiar e à ternura da mãe (Eva). A ária, em que ele fala para a mãe, é a expressão desses sentimentos desencontrados, que ele próprio não percebe, mas que são a manifestação do seu pressentimento de que não mais regressará.

 

A ária ‘Se l’interno affanno mio’ provém da cena 3 da ópera ‘Alcione’, estreada para o aniversário de Maria Francisca Benedita de Bragança, princesa do Brasil, a 25 de Julho de 1787, no Palácio da Ajuda (em cuja Biblioteca se encontra o manuscrito). A história retoma o mito do casal Céix e Alcione contado por Ovídio no Livro XI das ‘Metamorfoses’, tendo o poeta da Corte portuguesa Gaetano Martinelli adaptado para o efeito o libreto que Houdar de la Motte preparara para Marin Marais, para a ópera homónima deste, dada em 1706, em Paris. Após a despedida dos cônjuges (Céix partiu para o mar), Alcione confidencia à amiga Ismene os pressentimentos funestos que tem sobre a viagem do marido, sendo a ária a expressão dessa inquietação que se apossou do seu coração e do seu espírito.

 

Notas de rodapé:

1 – Maria Ana de Áustria era aliás prima direita de D. João V, pois as respectivas mães eram irmãs

2 - O casamento faz-se primeiro por procuração, a 9 de Julho, em Viena, e cerimonialmente, a 27 de Outubro, em Lisboa

3 – depois de Lisboa, foi criado apenas o Patriarcado das Índias, também sob inspiração portuguesa, com sede em Goa, em 1886.

4 – esta tendência manter-se-ia inalterada no reinado de D. Maria I (1777-1816)

5 – designada de ‘serenata’ quando de escala mais pequena (dimensões, número de personagens, requisitos cénicos)

 

Bernardo Mariano (musicólogo)