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SACRO VIVALDI - A MÚSICA SACRA DO 'PADRE RUIVO'

 

A ideia de dedicar um programa à música sacra de Antonio Vivaldi reside na convicção de que, muito provavelmente, a maioria do público pouco ou nada conhece da produção deste extraordinário compositor fora do âmbito de concertos instrumentais. A moda do mercado musical contemporâneo tem sido a de o confinar quase fosse uma espécie de “reservatório composicional” ao longo das últimas décadas. A verdade é que, se todos conhecemos várias das suas composições para instrumentos, concertos para violino ou para cordas ou outros instrumentos, poucos de nós temos a possibilidade de fruir as suas composições sacras e operáticas.

 

A música sacra de Vivaldi é, ao contrário do imaginário comum, sublime, opulenta e perfeitamente conseguida em termos de inspiração, equilíbrio, beleza e sincera devoção ao serviço dum pragmatismo instrumental e composicional que fez a fama de Vivaldi, não só nos tempos modernos, mas também ao longo da vida desse inimitável compositor. É nesse repertório que podemos viver a maravilha criada pelos desenhos e figuras retórico-musicais que Vivaldi emoldura em cada andamento e em cada palavra.

 

A grandeza da música vocal sacra de Vivaldi não reside na sua influência histórica, uma vez que não parece ter tido muita circulação no seu tempo e, ao contrário dos seus concertos, não iniciou qualquer prática copiada de outros compositores, mas sim na sua arte consumada e alto nível de inspiração, além de uma forma de expressar que é inteiramente individual e inconfundível. Nos seus melhores movimentos há um radicalismo quase chocante: um desejo de despojar a música até ao seu âmago e reconstituí-la a partir destes elementos mais simples. Há também um poderoso instinto de integração temática; a análise, vez após vez, revela como as mesmas ideias simples informam cada movimento de uma obra composta e lhe dão unidade. A pintura de palavras, muitas vezes inesperadamente subtil, testemunha a consideração que Vivaldi trouxe a estas composições. Podem ser descritos com precisão como a ponte entre a sua imaginação de músico e a sua convicção de padre: o ponto de convergência de todas as facetas da sua complexa personalidade.

 

Escolhemos para este programa um repertório ainda mais raro, maioritariamente escrito para orquestra e coro na esperança de trazer para o público algo de invulgar e belo, que possa ser digno deste Altar da arquitetura barroca primorosa que vai acolher o concerto; um elemento de simbiose inigualável, exclusivo do ciclo de concertos no qual temos a grande honra de participar.

 

Vivaldi escreveu o Laudate Dominum RV 606, um conciso, mas poderoso andamento do Salmo 116, para coro e cordas no seu 'primeiro' período na Pietà. Tendo apenas dois versículos, mais a Doxologia Menor obrigatória, o Salmo dificilmente poderia ter sido tratado de outra forma. Vivaldi concentra o interesse melódico e rítmico na parte para violinos de uníssono, tratando o coro como uma espécie de fórmula de reiteração continua. Esta parte para violino baseia-se num curto motivo que reaparece em todos os compassos. A meio caminho, o compositor produz um golpe de mestre, ilustrando a palavra 'misericórdia' com uma progressão crescente em notas sustentadas que leva a música momentaneamente para uma região distante, com um efeito retórico surpreendente.

 

Laetatus sum RV 607, peça que podemos definir quase como irmã da Laudate Dominum RV 606, ouvida pouco antes neste programa, é elaborada por Vivaldi em forma consequencial, seguindo o percurso estrófico. Assim sendo, aos versos 1-3, 4-6 e 7-9, respectivamente, são dados exactamente o mesmo material musical. A Doxologia (versos 10/11) é elaborada em forma de quarta estrofe, modificada e ampliada. O RV 607 é um cenário algo despretensioso, dominado pelo 'refrão' instrumental determinado pelos violinos. Foram executadas nas Vésperas, juntamente com cenários mais elaborados de outros salmos, a brevidade do primeiro compensando a duração do segundo de modo a manter a duração do serviço dentro de limites razoáveis. Por outras palavras, foram o complemento necessário dos cenários em vários movimentos. Com a mesma intenção, as duas peças são hoje executadas sem interrupção.

 

Com os seus vinte e sete versículos (não incluindo os dois que compreendem a Doxologia Menor), o Salmo 113 In exitu Israel, RV 604, com a sua estrutura num movimento único e contínuo, foi sempre um material “à mão” para uso de qualquer compositor. Vivaldi tomou uma decisão muito racional, mesmo se, na sua pressa em completar o movimento, conseguiu confundir o versículo 4 com o versículo 6, saltando assim acidentalmente um par de versos. O compositor faz o seu melhor para manter vivo o interesse musical neste movimento de 97 compassos. Varia os padrões de acompanhamento nos violinos, muda a tonalidade de forma eficaz e, por vezes, surpreendente, e utiliza diferentes tipos de textura vocal (embora sem nunca renunciar a uma homofonia omnipresente). Imitando a estrutura dos versos do Salmo, adopta por vezes um estilo responsorial em que só os sopranos solo são respondidos pelo coro completo. É interessante ver, a partir das partes instrumentais copiadas para uso próprio dos músicos da Pietà (e agora integradas na colecção da Biblioteca do Conservatório de Música de Veneza), que eles tiveram tanta dificuldade como nós em decifrar as intenções de Vivaldi.

 

O Credo em mi menor, RV 591, é a única composição sacra de Vivaldi sem vozes a solo concebida em mais do que um movimento e, mais uma vez, pertence ao primeiro período na Pietà.

 

O texto do Credo é excepcionalmente longo. Daí que os compositores tenham sempre procurado formas de comprimir a realização do texto de modo a não permitir que esta secção da Missa desequilibrasse as outras. O método de Vivaldi, no primeiro movimento, é fazer cantar blocos de acordes ao coro contra um fundo de figurações repetidas nos violinos. O coro e as cordas habitam assim dois "planos" completamente diferentes, cada um independente em si próprio, que se sobrepõem um ao outro. A curta secção 'Et incarnatus est' expressa o mistério da encarnação de uma forma tradicional, com acordes em movimento lento, muitas vezes inesperados nas suas progressões harmónicas. A parte central do movimento baseia-se numa das sequências de acordes preferidas de Vivaldi (que também poderemos ouvir no início do Magnificat). Uma vez que a passagem em questão está na chave remota de Sol menor, Vivaldi utiliza algum engenho para encaixá-la dentro de um movimento que começa em Lá menor e termina em Ré menor.

 

A jóia da obra é o 'Crucifixus'. Tradicionalmente, esses andamentos expressam o pesar e a dor através do cromatismo. De facto, as notas curtas e aguçadas escritas na partitura para notas cromaticamente alteradas, têm a forma da cruz. Dessa forma, consegue expressar o significado do texto através um procedimento que se torna visível, quase “ocular”. Com grande originalidade, Vivaldi acrescenta outra imagem, menos familiar: a da lenta caminhada até ao Calvário, através de notas pares e destacadas no baixo. A escassez da escrita vocal permite caracterizar cada parte individualmente, quase como se quatro espectadores estivessem a comentar a cena que se abre à frente deles. O trabalho termina com um movimento estruturado, à semelhança da abertura 'Credo in unum Deum', excepto quando conclui com um fugato agitado ('Et vitam venturi ... Amen'), numa reminiscência muito assimilável a um cantochão.

 

O Magnificat de Antonio Vivaldi em G menor chegou aos nossos tempos em duas versões conflituosas. A primeira, provavelmente a versão original (RV 610), é dominada por passagens corais impressionantes, mas em grande parte simples, contra alguns breves conjuntos vocais que se podem ajustar para solistas do coro. Na versão posterior (RV 611), as partes solo e um coro são substituídos por árias virtuosas exigentes. Hoje apresentamos uma combinação das duas versões.

 

Antonio Vivaldi (1678-1741)

 

O pai de Vivaldi, barbeiro de profissão, era também um hábil violinista, de tal modo que foi empregado na orquestra de St. Marcos, em Veneza. Devido à cor do seu cabelo, era conhecido pela alcunha Giovanni Battista 'Rossi': um eco desta alcunha ressoa na descrição 'Padre Ruivo' frequentemente associada a António, que tinha herdado o rutilismo do seu pai.

 

Ainda jovem, Vivaldi embarcou numa carreira dupla, musical e clerical. Do seu pai violinista recebeu a sua primeira (e talvez única) formação instrumental. Não se sabe quem o iniciou na composição, mas é possível supor que ao mesmo não faltaram as capacidades para transmitir os rudimentos da arte ao seu filho. Ao mesmo tempo, era comum que os filhos mais velhos de famílias pobres seguissem o sacerdócio a fim de usufruírem de uma educação, de um rendimento e de algum reconhecimento social. Além disso, em Veneza, o sacerdote secular (ou "abade") era autorizado a actuar em público como músico profissional, mesmo em teatro.

 

Desde o nascimento, António sofreu de "aperto no peito" (assim referido numa das suas cartas de 1737), presumivelmente uma bronquite crónica asmática que afectou a sua mobilidade. A proverbial agilidade dos dedos de Vivaldi em tocar violino quase pode ser vista, em termos psicológicos, como uma compensação para a fraqueza dos seus membros inferiores.

 

Em Setembro de 1703, Vivaldi foi empregado como professor de música no Hospitale della Pietà, a obra de caridade para órfãos subsidiada pelo governo veneziano. Um grupo especialmente seleccionado e treinado de quarenta raparigas dava regularmente concertos vocais e instrumentais nas funções da capela da Pietà. A sua aclamada excelência musical atraia um fluxo constante de visitantes, tanto estrangeiros como nobres. Vivaldi, como 'maestro di violino', foi responsável pelo ensino das instrumentistas de cordas avançadas assim como dos ensaios de orquestra e o fornecimento regular de novas peças instrumentais. No Outono de 1705, foi-lhe oferecida a oportunidade de compor a música para uma ópera a ser representada no teatro de S. Barnaba. A circunstância revela as ambições alimentadas por Vivaldi que, não contente em ser um mero violinista-compositor, aspirava à posição de compositor "universal".

 

Foi um dos principais alvos da sátira Il teatro alla moda (1720) de Benedetto Marcello, do qual existe uma tradução portuguesa do século XVIII*. No entanto, muitos vislumbraram um elogio disfarçado a Vivaldi, nesse hilariante 'pamphlet'.

 

No Verão de 1740, o então idoso compositor quis empreender outra viagem através dos Alpes. Partiu para Viena com a esperança de apresentar e dirigir uma ou mais óperas no teatro da cidade, o Kärntnertortheater. O projecto fracassou devido à morte inesperada de Carlos VI em Outubro e ao subsequente encerramento dos teatros.

 

Morreu a 27 de Julho de 1741 nos seus alojamentos vienenses, vítima, segundo o seu obituário, de uma "innerer Brand" (uma inflamação interna).

 

A influência de Vivaldi sobre os seus contemporâneos foi enorme. Os seus Concerti estabeleceram definitivamente a estrutura de três movimentos e a forma de ritornello; elevaram o quociente de virtuosidade, particularmente nos concertos para o seu instrumento, o violino; diversificaram o espectro de combinações instrumentais. Neste âmbito, a orquestra da Pietà ofereceu-lhe um laboratório experimental excepcional, com uma vasta gama de instrumentos a solo de todos os tipos, incluindo alguns raros e exóticos. Na música de igreja aumentou a contribuição da componente instrumental, enquanto nas óperas introduziu um estilo faux-naïf sedutor para papéis menores ou pastorais. De uma forma mais geral, a sua música enfatizou um imediatismo expressivo e uma simplicidade quase provocadora (por exemplo, nas passagens em que a orquestra é conduzida em uníssono), que desde então passaram a fazer parte do equipamento comum da linguagem musical.

 

* "O teatro à moda" / Benedetto Marcello; ed. José Camões, Filipa Freitas. - [Lisboa]: Centro de Estudos de Teatro, 2009. Tradução portuguesa do século XVIII. - Fac-símile do Códice CIX/ 1-6 da Biblioteca Pública de Évora, 1870. - ISBN 978-989-95460-1-1

 

Massimo Mazzeo (direção musical da Divono Sospiro)

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