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A 'Amigável' Disputa' - Notas ao Programa

Exactos contemporâneos (tinham apenas quatro anos de diferença), Clementi e Mozart foram ambos compositores e ‘virtuosi’ do cravo e do pianoforte, tendo desempenhado um importante papel na assunção de um estilo de escrita distintamente (ou idiomaticamente) ‘pianofortístico’, por oposição ao estilo cravístico que herdaram.

 

Romano de nascimento, Clementi foi levado para Inglaterra em 1766 (tinha 14 anos) e aí se fixou. O seu espírito empreendedor levá-lo-ia, mais tarde, a praticamente abandonar a carreira musical em prol da de editor musical e de construtor de pianofortes, tendo também aí sido um nome conceituado na cena musical londrina1. O prestígio que ganhou enquanto pianofortista e autor de obras para o instrumento levou-o a empreender uma digressão entre 1780 e 1783, com estadas relativamente prolongadas em Paris, Viena e Lyon, onde inclusive compôs e fez editar sonatas para tecla.

 

Em Viena, ficou para a história o despique promovido na véspera de Natal de 1781 pelo imperador José II e pela Grã-Duquesa da Rússia (nascida princesa de Württemberg), então de visita a Viena com o seu marido, o futuro czar Paulo I. Segundo uma fonte, os dois terão feito uma aposta de 100 ducados sobre o vencedor de tal ‘duelo’. Facto engraçado é que tudo indica que nem Mozart, nem Clementi sabiam que estavam a competir um com o outro (nem, claro, que eram objeto de uma aposta!).

 

De acordo com as fontes, tocou primeiro Clementi diante dos soberanos, com Mozart aguardando numa antecâmara, invertendo-se depois os papéis. De seguida, tocaram em dois pianos, alternadamente, peças de Paisiello, que leram à primeira vista, e fizeram improvisações sobre um tema (também de Paisiello?) dado pela Grã-Duquesa.

 

No final, esta reconheceu que Mozart fora superior e pagou os 100 ducados ao imperador. Este tê-los-á encaminhado em partes iguais para os dois músicos.

 

Decisivo para a vitória de Mozart foram os seus dotes de improvisador, que maravilharam quer o Imperador (que já os conhecia bem), quer a Grã-Duquesa. Além da improvisação acima referida, conta-se que, na sua aparição a solo, Mozart terá improvisado sobre um tema de uma das obras que Clementi acabara de tocar2. Ora, este, na edição de uma versão revista da Sonata em si b M, op. 24 n.º 2 (que hoje escutamos), publicada em 1804, declara que foi essa a obra que tocou no despique com Mozart, podendo nós especular que Mozart terá improvisado sobre o tema principal do 1.º andamento (que se ouve logo de início) e que apresenta enorme semelhança com o tema principal (tratado ao estilo de fuga) da Abertura da ‘Flauta Mágica’, que escreveria 10 anos mais tarde.

 

É bem conhecida, por algumas cartas que Mozart escreveu nos meses seguintes ao pai e à irmã, a sua opinião bastante negativa sobre Clementi, seja como compositor, seja como intérprete. Dos relatos conservados sobre a opinião em sentido contrário, infere-se que Clementi guardou uma grata recordação dessa ocasião e do conhecimento travado então com Mozart.

 

O programa de hoje remete para esse 24 de Dezembro de 1781, incluindo a tal Sonata em sib M, que é contraposta a duas breves obras de Mozart, nas quais a componente de livre fantasia e improvisação desempenharia certamente um relevante papel em qualquer execução que delas Mozart fizesse. O ‘Adagio’ é de Março de 1788 e a Fantasia provém de um fragmento para violino e piano escrito no Verão de 1782, que Maximilian Stadler (1748-1833) viria a arranjar e a completar (adicionando 43 compassos aos 27 autênticos), mas para piano solo, e que dedicou a Constanze Mozart, viúva do compositor.

 

Na mesma direcção se alinha a Fantasia e Variações sobre ‘Au clair de la lune’, op. 48, editada em 1821, e que apresenta uma Fantasia (‘Largo’, em dó menor, à guisa de Introdução), à qual se segue o Tema (dado num ‘Allegretto moderato’, em dó M), proveniente de uma canção popular francesa e que é a seguir sujeito a nove variações.

 

Já o Estudo provém do Livro I do ‘Gradus ad Parnassum’, op. 44, colecção de 100 exercícios primeiramente editada em 1817, em Londres (com reedições em 1819 e 1826) e subintitulada ‘A arte de tocar ao painoforte’. Ao invés de uma simples sucessão de estudos progressivos (como em Czerny), temos em Clementi peças agrupadas aos pares ou em pequenas suites, usando formas muito variadas e escritas no decorrer da sua longa carreira, funcionando como um mostruário das suas técnicas de escrita. O Estudo n.º 15 é a 4.ª e última peça de uma ‘Suite de quatre pièces’, composta de um Prelúdio, uma Fuga a 4 vozes e de um ‘Adagio sostenuto’, vindo a concluir com este ‘Allegro’ escrito em forma-sonata. Engraçado que, quer aqui, quer já em algumas das variações da ‘Fantasia’, é possível detectar por vezes a influência dos ‘Esercizi’ (as Sonatas/Toccatas) de Domenico Scarlatti. 

 

Notas de rodapé:

1 - Seria já nessa ‘nova pele’ que Clementi conheceria João Domingos Bomtempo, com quem estabeleceria uma relação pessoal e profissional.

2 - Além dessa, tocou ainda a Toccata, op. 11

 

Bernardo Mariano (musicólogo)